terça-feira, 29 de maio de 2012

A Mulher na Música Popular

Remexendo meus arquivos achei um texto curioso de um passado que ja vai dobrando a esquina. Como hoje o blog é um veiculo de informação, achei que deveria publicá-lo. Aí vai: A MULHER NA MÚSICA POPULAR Entre a deusa do asfalto e a boa cozinheira- Pouco antes de morrer o ator-compositor Mário Lago foi homenageado em um programa de televisão. Aos 90 anos, era um dos poucos sobreviventes de uma fase muito rica da música popular brasileira. Basta lembrar, eu digo (ou canto) sempre, “Devolve” e “Nada Além”. Aqueles versos de “Devolve” arrepiam: “...devolve/ toda tranqüilidade que eu te dei e que perdi/....devolve/ e eu te devolvo ainda/ toda a saudade infinda que eu tenho de ti”. Mas o que se entoou na homenagem foi “Ai Que Saudades da Amélia”, o samba que Mário fez de parceria com Ataulfo Alves em 1942. Um sucesso no carnaval desse ano que se repetiu no ano seguinte e ficou na memória de gerações. “...Amélia” , cantada até por mulheres , é uma das muitas composições machistas que passaram por cima de saias. Na época o malandro carioca esticava um sambinha na caixa de fósforo enquanto tirava o sarro de uma sinuca, na Lapa. O Chico Buarque pintou o tipo, que por sinal exauriu o último suspeito na morte do Moranguera (Moreira da Silva), ano passado. Para o malandro, mulher era mesmo a serviçal que além de arrumar a casa, cozinhas, lavar a roupa , tinha de estar sempre disponível para o sexo. Na letra de Mário Lago, o protótipo da mulher “de serviço” era evocada em comparação (com uma outra, sucedânea) e nostalgia. O herói lembrava quem com ele passava fome e ganhava por estimulo a sua conformação de mulher de malandro: “achava bonito não ter o que comer”. Certo que muito menos arrochos chauvinistas do que em outras músicas dedicadas à outras mulheres. O mesmo Mário, com Roberto Roberti, cantava em l94l que a Aurora para usufruir de certo conforto (“um rico apartamento com porteiro e elevador/ um ar refrigerado para os dias de calor”) precisava ser sincera e ter “madame antes do nome”, ou seja, ser bem casada. Mas não forma só as Amélias e as Auroras que apareceram nos anos pré-dourados da MPB para registrar a influência do malandro. Em “Helena, Helena”, Antônio Almeida e Consantino Silva (também em l94l) registravam “Eu ontem cheguei em casa, Helena,/ te procurei e não te encontrei,/ fiquei tristonho a chorar./ Passei o resto da noite a chamar:/ Helena, Helena vem me consolar./..... mesmo cansado teu nome eu chamava baixinho/ Helena dos meus encantos/ vem me fazer um carinho...” Quer dizer: a mulher devia estar em casa esperando o marido quando lhe desse a veneta de chegar. Anos mais tarde (1957) Adelino Moreira foi mais explicito: “...acontece/ que a mulher que surgiu em meu caminho/ com ternura meiguice e carinho/ sendo a vida do meu coração./ Compreendeu,/ me abraçou e dizendo a sorrir/ meu amor você pode partir/ não esqueça o seu violão./ Vá rever/ os seus rios seus montes e cascatas/ vá sonhar em novas serenatas/ e abraçar seus amigos leais./ Vá embora/ pois me resta o consolo e a alegria/ em saber que depois da boemia é de mim que você gosta mais”. E a Emilia? Em 1942 (êta anozinho macho!), Wilson Batista e Haroldo Lobo pintaram o tipo para os homens (e as mulheres, que cantavam sem raciocinar o quê) no carnaval: “Quero uma mulher/que saiba lavar e cozinhar; / que de manhã cedo/ me acorde na hora de trabalhar. / só existe uma e sem ela eu não vivo em paz: / Emilia, Emilia, Emilia eu não posso mais.” E ainda: “Ninguém sabe igual à ela/preparar o meu café,/ não desfazendo das outras/ Emilia é mulher;/ Papai do Céu é quem sabe/ a falta que ela me faz/ Emilia, Emilia , Emilia eu não posso mais”. Em l947, empolgados pela imagem de Rita Hayworth, Mário Lago, “again” e Erasmo Silva faziam a marcha carnavalesca “Gilda” ( “Nunca houve mulher/igual à Gilda”). Só que na galhofa: “ela vai/ se esquece de voltar, / e quando volta não dá confiança de se explicar”. Explicava sim: Gilda de Rita era a “femme fatale” que levava os homens no cabresto. O filme de Charles Vidor mostrava assim, até no fato de exibir um “strip tease” em que a “stripper” só tirava as luvas. E antes que eu me esqueça: ela cantava “Amado Mio”de Alllan Roberts e Doris Fisher, sucesso do ano (1946) onde a mulher rendia-se a um amor nada fiel. Via de regra, as mulheres dos sambas, marchas e canções eram submissas e apaixonadas (não necessariamente nesta ordem). As importadas eram santas (“Santa/ santa mia...”) ou pecadoras (Por que tens teu destino/ pecadora..”), sem distinção nesse jogo entre céu e inferno. Muitas surgiam dos melodramas mexicanos filmados por cineastas medíocres. Algumas abriam espaço para uma garbosa exceção: as de Augustin Lara. Feio, complexado por isso (uma espécie de Jean Cocteau mexicano), ele rendia boleros à sua Maria Felix (foi sua companheira por um tempo), a Maria Bonita que ele cantava como “Maria del alma”, ao mesmo tempo em que a condenava ao generalizar a falsidade, ou infidelidade, nas “palabras de mujer”. Essas muchachas foram definidas dentro do conceito de inferioridade em relação ao homem como a que Paul, Misraki , Ben Molar e S. Pondal Rios exibiram em 1949: “Uma mulher/ tem que ser/ sonhadora ...” Nunca mais eu ouvi cantar “Até Hoje não Voltou”, samba de Geraldo Pereira e J. Portela gravado em 1946. Tratava de um sujeito que havia procurado uma mulher ideal no interior brasileiro, pensando que roceira era sinônimo de ingênua. Quando quebrou a cara, cantou com raiva: “Eu fui buscar/uma mulher na roça,/ que não gostasse de samba/ e nem gostasse de prosa; / com uma semana depois que aqui chegou/ mandou esticar os cabelos e as unhas dos pés pintou./ Foi dançar na gafieira e até hoje não voltou”. Complementando a mágoa de quem deu tudo e não “lucrou nada”: “Ela não tinha um vestido, um sapato, que se apresentasse, eu comprei/ chegou toda errada/ falar nem sabia/ fui eu que ensinei. / Perdi tanto tempo, gastei meu dinheiro, fui tão longe à toa,/ mas já vi que sou muito infeliz,/é melhor eu viver sem patroa”, Pior, nos 40, foi o samba “Se Eu Pudesse”, gravado pelo conjunto 4 Ases e l Coringa”: “ Se eu pudesse acabava com tudo que é mulher,/uma força estranha no meu/ destino é quem quer, / pra não dar o prazer de entregar o meu coração/ à uma classe tão desigual/ e sem consideração.”E concluía:” Mulheres, tantas mulheres/ eu já tive e não posso negar,/ todas elas iguais/difíceis de se controlar./ e como eu sou gato escaldado/ a elas vou revidar/ esse bicho de saias/ só serve pra atrapalhar”. Neste caso, reparem, o autor revela um profunda dor de cotovelo. Eu escrevi cotovelo ? Qual nada: um chute nos testículos. Mas o machismo prosseguiu. Nos 60 Anísio Silva compunha e cantava “Interesseira” (a que não ama ninguém e só faz o mal a quem lhe quer bem), alertando para a perfídia que cerca o sexo feminino desde que Alberto Dominguez lançou o seu bolero (“Perfídia”) em 1939. Pelo Brasil brasileiro, tentava-se “elogiar” a mulher comparando-a com o homem: “Paraíba masculina, mulher - macho sim senhor”( baião “Paraíba” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1950). Antes, Dorival Caymi punia Marina (1947) porque se pintara , Klecius Caldas e Armando Cavalcanti descobriam a funcionária picareta a varar enciclopédias com “Maria Candelária” (1952),tão bem sucedida ao ponto de gerar, três anos depois, “Maria Escandalosa” (a que “desde criança sempre deu alteração”). Com a Bossa Nova e o que veio imediatamente depois a mulher foi resgatada ao sacrário que Pixinguinha a havia colocado no seu “Rosa”(1937). Mas entre a certeza de que seria amada (“Eu sei que vou te amar....”) ficou pelo menos duas evocações de um destino amargo : a de que seria lembrada apenas por andar nua pelo país de homens (na belíssima canção “João e Maria” de Chico Buarque), e, do mesmo autor, como a figura alheia ao mundo, a Carolina que não via , de sua janela metafórica, o tempo passar. É claro que simultaneamente às músicas pouco edificantes sobre a figura feminina, muitas surgiram endeusando-a. Não fosse assim e não existiriam as serenatas sob as janelas das Julietas de subúrbio. Mesmo assim, no auge dessas sessões musicais para as donzelas que Orestes Barbosa tão bem pintou em seu poema “Serenata”, ainda sobrava alguns pisões nos dedos. A “Malandrinha” (1927) de Freire Júnior acenava (com o violão) para quem “não precisa trabalhar”. Melhor do que no samba que pedia uma empregada de alcova: “Eu ando procurando/uma boa cozinheira, /porque meu casamento, ai me Deus, foi uma asneira, / sou eu que faço tudo/ no almoço e no jantar, / porque minha mulher/ não quer trabalhar”. E ainda existe o chamego com a mulata “pois a cor não pega”. Mas esta é outra conversa. Como o espaço é de cinema, vale dizer que algumas das composições citadas estiveram em filmes nacionais. A maioria intrometendo-se nos enredos das comédias ligeiras – aquilo que os críticos chamaram de “chanchada”. As meninas cantavam sem se importar com algum preconceito. Mesmo porque, nos filmes, as músicas estavam engessadas, chamando pouca atenção. Tanto fazia repetir que “a mulata é a tal” ou que só a Amélia “é que era mulher de verdade”. A platéia prestava mais atenção às brigas de Eliana Macedo com as vilãs arrumadas por seu tio Watson (o diretor das primeiras grandes chanchadas da Atlântida). Aliás, a colocação das marchas, sambas e transgressões de clássicos nas fitas “carnavalescas”, é um papo que merece espaço condizente. Por aqui, outro dia. (Pedro Veriano).

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