Não só o cinema Olímpia faz cem anos. Minha madrinha Odete também. Ela nasceu no dia 10 de fevereiro de 1912. Prima de minha mãe morava em minha casa assim como a irmã , Maria dos Anjos, esta nascida em Portugal . Devo muito à dindinha. Era a minha companheira nas idas ao cinema quando criança, e quem cuidava de meus afazeres mais elementares, do banho ao vestir. E quem me ambientava à cultura da época. Divisão de tarefas com minha avó materna, Ângela, que se foi quando eu ainda era adolescente.
Odete,como a irmã, não casou. Soube que namorou. Mas a educação que a cercava era de convento. Uma religiosidade patológica impedia que desse liberdade a seus hormônios –e idéias. Mesmo assim, já com 60 anos, tornou-se enfermeira. Ganhou emprego no SESC local e era perfeccionista em aplicar injeções endovenosas, usar aparelhos como o inalador e o infravermelho, enfim, o que um paramédico de hoje costuma fazer. Nesse período eu já era formado em medicina e dava consultas no ambulatório da entidade. Ela me ajudava. Isso sem desprezar, em casa, os cuidados com minha mãe, que depois de ficar viúva tornou-se dependente dessa dama de companhia.
O seu colega de nascimento, o cinema Olímpia, foi nosso programa em muitas matinais de domingo. Lembro de que ela gostava muito dos filmes com Bette Davis e sem duvida expôs um efeito mimético ao elogiar “A Estranha Passageira” onde Bette, solteirona, navegava em cruzeiro achando no caminho Paul Henreid (aquele filme que terminava com a frase: “para que desejamos a lua se nós temos as estrelas?”- cena usada em “Houve Uma Vez um Verão”/Summer’42). Também saiu do cinema falando maravilhas de “Belinda” onde Jane Wyman fazia uma surda-muda violentada por um brutamonte. Ela que era avessa a filme premiado elogiou dessa vez o Oscar dado a Jane.
Ainda nas lembranças de cinema sempre fica em minha cabeça a sessão em que fomos ver “O Ladrão de Bagdá” e um fiscal de menores (o filme era proibido até 10 anos - e eu tinha 9 mas parecia ter menos) sentou-se atrás de minha poltrona e passou bom tempo atormentando Odete por ter levado um menor – e só mais tarde eu entendi que era uma paquera.
Muito de minha infância foi deletado com os anos. Mas a madrinha “de carregar”(levava o bebê no colo à pia batismal) e de fogueira (de S.João) driblou esquecimentos. Ela ainda conheceu minha mulher e minhas filhas, que a chamavam de “tatá”. Reprisou nelas o cuidado que me legou. E a todos deixou lágrimas quando sofreu em AVC hemorrágico e se foi aos 70 anos.
Cem anos de afeto. Material (o cinema) e espiritual (a madrinha). O primeiro vai persistir agora que foi considerado patrimônio da cidade. O segundo está em mim e na minha prole até que embarquemos para encontrar essa abnegada mulher que passou pela vida ajudando os outros.
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